Existe uma razão para aquela famosa necessidade de pegar a assinatura de duas testemunhas em um contrato: para o contrato particular poder ser executado por meio de uma ação de execução – um procedimento mais rápido, em que não se discute quem tem razão, mas apenas se determina o cumprimento do contrato –, é necessário que ele possua as características de título executivo extrajudicial: que ele seja (i) assinado pelo devedor e (ii) por duas testemunhas[1], nos termos do art. 784, II, do Código de Processo Civil[2].
Mas aí surge a grande dúvida: e nos contratos com assinatura digital?
A assinatura eletrônica começou a ter regulamentação no Brasil com a Medida Provisória nº 2.200-2/2001, que criou a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil. O art. 10[3] da medida provisória estabeleceu duas formas de assinatura eletrônica: (i) assinatura com certificado digital em conformidade com a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e (ii) assinatura com outros meios eletrônicos de comprovação de autoria e integridade, cuja validade depende da aceitação de pessoa para quem o documento é apresentado.
Em 2020, por conta da pandemia do coronavírus (COVID19) e diante da necessidade de tornar a Administração Pública mais digital para permitir o seu funcionamento remoto, foi aprovada a Lei nº 14.063/2020, que, em seu art. 4º[4], classificou as formas de assinatura eletrônica em interações com entes públicos:
- Assinatura eletrônica simples: Assinatura que não possui validação e se caracteriza pela autodeclaração da identificação do signatário;
- Assinatura eletrônica avançada: Assinatura que utiliza certificado digital que não é da ICP-Brasil ou outro meio eletrônico de comprovação da autoria e integridade do documento;
- Assinatura eletrônica qualificada: Assinatura que utiliza certificado digital validado pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).
Conforme previsto no art. 5º da Lei nº 14.063/2020[5], a aceitação de cada modalidade de assinatura varia de acordo com o grau de impacto da interação com o poder público, o que deve ser definido por cada ente.
Contudo, mesmo no caso da assinatura eletrônica com o maior grau de confiabilidade – a qualificada, com certificado digital da ICP-Brasil -, para o documento ser considerado um título executivo, em tese, ainda seriam necessárias as assinaturas das duas testemunhas.
A respeito do tema, porém, o STJ tem um importante precedente: a decisão do Recurso Especial nº 1.495.920, que relativizou essa regra legal e considerou como título executivo o contrato com assinatura eletrônica mediante certificado digital validado pela ICP-Brasil, mesmo sem a assinatura de duas testemunhas:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EXECUTIVIDADE DE CONTRATO ELETRÔNICO DE MÚTUO ASSINADO DIGITALMENTE (CRIPTOGRAFIA ASSIMÉTRICA) EM CONFORMIDADE COM A INFRAESTRUTURA DE CHAVES PÚBLICAS BRASILEIRA. TAXATIVIDADE DOS TÍTULOS EXECUTIVOS. POSSIBILIDADE, EM FACE DAS PECULIARIDADES DA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO, DE SER EXCEPCIONADO O DISPOSTO NO ART. 585, INCISO II, DO CPC/73 (ART. 784, INCISO III, DO CPC/2015). QUANDO A EXISTÊNCIA E A HIGIDEZ DO NEGÓCIO PUDEREM SER VERIFICADAS DE OUTRAS FORMAS, QUE NÃO MEDIANTE TESTEMUNHAS, RECONHECENDO-SE EXECUTIVIDADE AO CONTRATO ELETRÔNICO. PRECEDENTES.
[…]
5. A assinatura digital de contrato eletrônico tem a vocação de certificar, através de terceiro desinteressado (autoridade certificadora), que determinado usuário de certa assinatura a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser sigilosamente enviados.
6. Em face destes novos instrumentos de verificação de autenticidade e presencialidade do contratante, possível o reconhecimento da executividade dos contratos eletrônicos […][6].
Esse entendimento causou controvérsia em grande parte da doutrina processualista, já que os títulos executivos são regidos pelo princípio da taxatividade, ou seja, somente é um título executivo aquilo que a lei diz que é, não podendo ser criado por liberalidade das partes.
Para resolver a questão, recentemente, houve uma importante alteração legislativa no Código de Processo Civil, com o advento da Lei nº 14.620/2023, publicada em 14/07/2023, que adicionou ao §4º ao art. 784 do CPC, com a seguinte redação:
§ 4º Nos títulos executivos constituídos ou atestados por meio eletrônico, é admitida qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista em lei, dispensada a assinatura de testemunhas quando sua integridade for conferida por provedor de assinatura.
Com isso, a lei confere aos contratos que sejam assinados por meio digital a qualidade de título executivo, dispensada a assinatura de testemunhas, desde que seja possível conferir a integridade do documento em um provedor de assinaturas.
Portanto, a nova lei trouxe mais segurança jurídica aos documentos assinados digitalmente e eliminou uma burocracia incômoda para assinatura de contatos. Assim, na prática, se você for assinar digitalmente um contrato, que não contenha a assinatura de testemunhas, o recomendado é assinar em uma modalidade de assinatura que permita a conferência da sua autenticidade pela internet.
[1] Sobre essa temática, gravei um vídeo em 2018, que pode ser conferido aqui.
[2] Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais:
[…]
III – o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas;
[3] Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.
1o As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916 – Código Civil.
2o O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.
[4] Art. 4º Para efeitos desta Lei, as assinaturas eletrônicas são classificadas em:
I – assinatura eletrônica simples:
a) a que permite identificar o seu signatário;
b) a que anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário;
II – assinatura eletrônica avançada: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características:
a) está associada ao signatário de maneira unívoca;
b) utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo;
c) está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável;
III – assinatura eletrônica qualificada: a que utiliza certificado digital, nos termos do § 1º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001.
1º Os 3 (três) tipos de assinatura referidos nos incisos I, II e III do caput deste artigo caracterizam o nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular, e a assinatura eletrônica qualificada é a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos.
[5] Art. 5º No âmbito de suas competências, ato do titular do Poder ou do órgão constitucionalmente autônomo de cada ente federativo estabelecerá o nível mínimo exigido para a assinatura eletrônica em documentos e em interações com o ente público.
[6] STJ – REsp n. 1.495.920/DF, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 15/5/2018, DJe de 7/6/2018.