Há quase 35 anos estreava nos cinemas o filme Brazil[1], dirigido por Terry Giliam, um dos integrantes do ilustre grupo de humor Monty Python. O filme, inspirado no livro 1984 de George Orwell, retrata uma sociedade distópica totalitária e extremamente burocrática.
Curiosamente, Terry Gilliam escolheu o nome “Brazil” por um motivo bastante banal: ele relatou ter tido a ideia ao ouvir a canção Aquarela do Brasil – que faz parte da trilha sonora do filme, em diversos arranjos diferentes – enquanto observava o pôr do sol. No entanto, o filme se passa, conforme os próprios dizeres em seu início, “em algum lugar no Século XX”, sem definir em nenhum momento qual é o país retratado.
Talvez Gillian sequer conhecesse nosso país a fundo, mas, ainda que realmente a escolha do nome tenha sido tão aleatória quanto ele diz – há quem conteste a sua justificativa –, não poderia ser mais acertada para descrever uma nação absorta pela burocracia: nesse quesito, o “Brazil” do filme é tão distópico quanto o Brasil real.
O Brasil sempre teve uma forte tradição de controle estatal. Não é à toa que temos até hoje uma cultura cartorária de que qualquer documento precisa ter firma reconhecida, qualquer cópia precisa ser autenticada e absolutamente qualquer coisa precisa de um carimbo de algum órgão público para ter alguma validade.
O excesso de burocracia, aliado à ineficiência estatal, é dos principais fatores que torna nosso país um ambiente inóspito para negócios. Por exemplo: segundo levantamento[2], o tempo médio de abertura de empresas no Brasil, considerando todos os registros, alvarás e licenças necessários é de absurdos 117 dias, enquanto que a média nos países desenvolvidos é de apenas 5 dias.
No dia 30 de abril de 2019, no entanto, o Governo Federal parece ter dado o primeiro passo para libertar o Brasil desse pesadelo burocrático e autoritário: a Medida Provisória nº 881/2019[3], apelidada de “MP da Liberdade Econômica”. Nas palavras do Presidente da República, a MP tem o objetivo de “tirar o Estado do cangote do cidadão”[4].
Muito embora tenha sido noticiado que essa medida provisória irá diminuir burocracia para startups e pequenos negócios[5], ela é, na realidade, muito mais ampla e importante do que isso. A MP é verdadeiramente emancipatória ao criar a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que prevê direitos básicos para toda pessoa natural ou jurídica relacionados ao exercício de atividade econômica. Além disso, a MP alterou diversas normas, incluindo o Código Civil, que têm aplicação muito mais abrangente do que tem sido alardeado.
Menos Burocracia, mais confiança no cidadão
A medida que tem sido mais divulgada é a prevista no art. 3º, inciso I, que prevê como direito o desenvolvimento de atividade econômica de baixo risco sem a necessidade de atos públicos de liberação (considerados aí a autorização, a inscrição, o registro, o alvará e os demais atos exigidos, com qualquer denominação).
Essa medida visa impulsionar a abertura de novas empresas e a geração de novos negócios em que os atos de liberação não são necessários e representam apenas um entrave. Além disso, mesmo que indiretamente, é um forte instrumento anticorrupção, pois fecha uma porta que poderia ser utilizada por agentes públicos desonestos para exigir vantagens para “agilizar” um determinado ato liberatório.
Essa medida tem como pressuposto outra mudança bastante importante trazida pela MP: a confiança no cidadão. A exigência de uma fiscalização prévia pelo Estado para toda e qualquer atividade econômica, por mais inofensiva que seja, tem como fundamento uma infundada desconfiança no cidadão. O art. 3º, inciso V, da MP, em sentido contrário prevê a presunção de boa-fé no exercício de atividade econômica como um direito básico de liberdade econômica. Afinal, se a livre iniciativa é consagrada na Constituição Federal, o livre exercício deve ser a regra geral; a fiscalização por parte do Estado, a exceção. Por isso, a confiança no cidadão é importante passo para um patamar mínimo civilizatório.
Entretanto, não são apenas as atividades de baixo risco contempladas na MP. O art. 3º, inciso IX, prevê a garantia de que toda solicitação de ato de liberação de atividade econômica deve ter um prazo e se a Administração Pública não der resposta dentro prazo, a solicitação estará aprovada de forma tácita, evitando assim que atividade econômica seja prejudicada pela morosidade estatal.
Respeito aos Contratos
A medida provisória traz também instrumentos importantes para a promoção de segurança jurídica para os negócios e, em especial, para os contratos. Em dissertação de mestrado que defendi recentemente[6], argumentei justamente que a insegurança jurídica na interpretação de contratos é um grave problema no Brasil, pois gera dúvida se o que está sendo pactuado realmente prevalecerá em caso de uma demanda judicial, o que aumenta os custos do negócios, que acabam sendo socializados. Por isso, defendi que deve ser preservada ao máximo a liberdade contratual, reservando-se a intervenção estatal nos contratos apenas para excepcionalidades.
A MP vai justamente ao encontro dessa ideia. O art. 3º, inciso VIII, prevê que os negócios jurídicos empresariais devem ser objeto de livre estipulação das partes pactuantes, devendo a legislação ser aplicada apenas de forma subsidiária, em razão da dinâmica que é própria das atividades empresariais, cujas inovações contratuais são muito mais velozes que a modernização da legislação. Além disso, inclui o art. 480-B no Código Civil, prevendo que deve ser presumida a simetria dos contratantes e observada a alocação de riscos por eles definida.
A respeito dos contratos, a MP trouxe ainda notável alteração no Código Civil a respeito da função social dos contratos. Em minha dissertação, argumentei que o instituto da função social dos contratos é frequentemente utilizada por juízes e tribunais para relativizar contratos como forma de promoção de justiça social, o que, no entanto, muitas vezes causa consequências negativas não previstas por eles – um exemplo clássico é o caso em que uma série de decisões equivocadas do Tribunal de Justiça de Goiás simplesmente extinguiu um mercado de financiamento de produtores de soja, que era justamente quem o Tribunal desejava proteger[7].
A MP alterou o art. 421 do Código Civil, determinando que a função social do contrato deve ser interpretada de acordo com a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Além disso, incluiu um parágrafo único, que dispõe: “Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional”.
Influência da Análise Econômica do Direito
É possível perceber também notável influência da Análise Econômica do Direito na MP, o que é muito positivo, embora essa corrente de pensamento ainda seja alvo de desconfiança e críticas por boa parte dos juristas brasileiros, que a consideram conservadora, reacionária, (neo)liberal, dentre outros adjetivos – alguns pejorativos – tradicionalmente atribuídos à direita política[8].
Na realidade, a Análise Econômica do Direito nada mais é do que aplicar conceitos e ferramentas próprios da economia ao direito. E a economia, enquanto ciência, não tem lado ideológico. Convém lembrar lição de Ludwig von Mises: “A economia não pretende emitir juízos de valor; aspira tão somente a conhecer as consequências de certos modos de agir”[9].
A verdade é que o estudo interdisciplinar do direito é indispensável e a utilização da economia para a análise de instrumentos jurídicos intrinsecamente ligados ao mercado é essencial. Penso, inclusive, que haverá de chegar o dia em que se falar em “análise econômica do direito” soará até estranho; não porque deixará de existir, mas justamente porque será incorporada ao direito de forma tão natural, que tal expressão parecerá redundante.
Um exemplo claro da influência da AED na MP é o art. 4º, inciso VI, que veda ao Estado, ao exercer o seu poder regulatório, aumentar os custos de transação[10] sem demonstração de benefícios. Essa previsão veda, por exemplo, a criação de alguma nova taxa para a celebração de uma compra e venda de um imóvel que tenha intuito meramente arrecadatório para cartórios.
A MP também prevê uma série de garantias para a livre iniciativa e livre concorrência em seu art. 4º, vedando o abuso do poder regulatório, com a proibição de normas que criem reserva de mercado, impeçam a entrada de novos competidores ou restrinjam publicidade e propaganda em um determinado setor – essa, aliás, é uma excelente sugestão para a OAB.
Ademais, o art. 5º da MP determina que a necessidade de análise de impacto regulatório para a edição de atos normativos, partindo da ideia de que uma norma, mesmo que com boas intenções, pode causar sérios danos em um mercado se os seus impactos não forem avaliados.
Vai Vingar?
No Brasil, há uma incômoda tradição de leis que “pegam” e leis que “não pegam”. No caso de uma medida provisória, por sua própria natureza, a pergunta é ainda mais pertinente, pois a sua conversão em lei ainda depende do Congresso Nacional. Além disso, é de se esperar resistência por parte de alguns agentes públicos acostumados a velhas rotinas e recalcitrância por parte de alguns magistrados por divergências ideológicos – a exemplo do que já ocorreu com a Reforma Trabalhista.
De todo modo, pelo menos é possível ver que finalmente surge uma tendência de nos distanciarmos do Brazil concebido por Terry Gillian.
[1] Mais informações em: https://www.imdb.com/title/tt0088846/
[2] Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/economia/empreender-pme/abertura-de-empresas-no-brasil-emperra-nas-prefeituras-e-leva-mais-de-100-dias-28aiwfb1nhqtt1l9snqms4gc3/
[3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Mpv/mpv881.htm
[4] Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/04/30/interna_politica,752460/governo-assina-mp-para-tirar-o-estado-do-cangote-do-cidadao.shtml
[5] Exemplo: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/04/30/bolsonaro-assina-mp-que-diminui-burocracia-para-startups-e-pequenos-negocios.ghtml
[6] CARREIRÃO, Bruno de Oliveira. Liberdade Contratual e Constituição: A questão da eficácia dos direitos fundamentais nos contratos privados. 2019. 230 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Mestrado em Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.
[7] Sobre esse caso, vale a leitura de artigo de Luciano Timm: TIMM, Luciano Benetti. Direito, economia e função social do contrato. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 33, p. 15–31, 2006.
[8] Um bom exemplo dessa desconfiança de alguns juristas foi uma recente manifestação do Min. Ricardo Lewandowski: https://www.youtube.com/watch?v=dgQgvCso2jk&feature=youtu.be&t=1h40m1s
[9] MISES, Ludwig von. Ação Humana. 3a ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p. 298.
[10] O conceito de custos de transação é um conceito básico da Análise Econômica do Direito e, segundo Robert Cooter e Thomas Ulen (COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. 6a ed. Boston: Addison-Wesley, 2016, p. 88) são todos os custos envolvidos em uma troca. Os custos de transação se dividem em custos de busca (ex.: custo de contratação de imobiliária para anunciar imóvel à venda), custos de acordo (ex.: custo de contratação contração de advogados para redação de contrato) e custos de execução (ex.: custos para a propositura de ação judicial visando o cumprimento de um contrato).