*Artigo publicado originalmente em 2015 na Revista do Portal Jurídico Investidura
Em sua clássica obra A Lei, Frédéric Bastiat, ainda no Século XIX, descrevera de maneira quase profética um dos grandes males de nosso tempo. Segundo Bastiat, a lei deveria ter como única função a “proteção das pessoas, de todas as liberdades e de todas as propriedades” [1], sob pena de, ao exceder esses limites, promover a espoliação da propriedade alheia.
Assim, Bastiat defende que uma lei que excede seus limites deve ser imediatamente revogada, pois, caso contrário, a consequência seria a contaminação do sistema jurídico:
Se essa lei — que deve ser um caso isolado — não for revogada imediatamente, ela se difundirá, multiplicará e se tornará sistemática.
Sem dúvida, aquele que se beneficia com essa lei gritará alto e forte. Invocará os direitos adquiridos. Dirá que o estado deve proteger e encorajar sua indústria particular e alegará que é importante que o estado o enriqueça, porque, sendo rico, gastará mais e poderá pagar maiores salários ao trabalhador pobre [2].
O trecho acima nada mais é do que uma perfeita descrição de muitas discussões jurídicas da atualidade. Confundem-se direitos, benefícios e serviços e defendem-se privilégios com base no argumento do “direito adquirido”. É o que acontece, por exemplo, em um momento de crise econômica, em que se suscita a flexibilização da legislação trabalhista e os sindicatos prontamente acusam as “elites” de estarem tentando subtrair os direitos do trabalhador.
Em meio a discussões dessa natureza, surgiu uma ficção jurídica das mais abjetas: o princípio “constitucional” da vedação ao retrocesso. É mais um fruto do pan-principiologismo, conceito cunhado por Lênio Streck para retratar o péssimo costume nacional de criar “princípios despidos de normatividade” [3] – tais como o princípio da confiança no magistrado da causa e o princípio da felicidade (!).
Embora o princípio “constitucional” da vedação ao retrocesso não tenha nenhum respaldo na Constituição, é estudado e levado a sério, tanto pela academia quanto por operadores do Direito. Segundo Ingo Sarlet, esse “princípio” é “a proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não)” [4].
O Direito Brasileiro consagrou na Constituição Federal de 1988 um extenso rol de direitos fundamentais. Entre eles, estão os chamados direitos fundamentais de primeira geração, que, em suma, são “postulados de abstenção dos governantes, criando obrigações de não fazer, de não intervir sobre aspectos da vida pessoal de cada indivíduo” [5], como, por exemplo, o direito a vida, o direito de propriedade e o direito de livre manifestação do pensamento. Portanto, a proteção aos direitos fundamentais de primeira geração cumpre justamente a função que Bastiat atribui à lei: a proteção das pessoas, das liberdades e das propriedades.
No entanto, estão inseridos também no rol dos direitos fundamentais da Constituição brasileira os direitos de segunda geração, que, ao invés de estabelecerem uma abstenção estatal, são “prestações positivas por parte do Estado” [6]. São os chamados direitos sociais, nos quais se incluem os direitos a “assistência social, saúde, educação, trabalho, lazer, etc.” [7]. Nessa semana, inclusive, com aprovação da PEC 74/2013 [8], foi inserido na Constituição um novo direito social: o direito ao transporte.
A Constituição Federal prevê ainda os direitos fundamentais de terceira geração, também conhecidos como coletivos e difusos, que são o “direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural” [9].
Curioso notar que, na produção acadêmica brasileira, em geral, pouco se contesta o status dos direitos de segunda e terceira geração como direitos fundamentais e muitos menos como direitos propriamente ditos, pois, no senso comum, há a ideia de que quanto mais direitos, melhor.
Isso se deve ao fato de que as faculdades de Direito brasileiras são em sua maioria verdadeiras fábricas de estatólatras e burocratas, que são por anos ensinados que se algo está escrito em um papel com um carimbo de algum órgão público é porque é verdadeiro.
Do ponto de vista teórico, no entanto, como é possível defender a existência de um direito “à paz”? No que consiste o direito “ao lazer”? Significa, por exemplo, que o Poder Público deve financiar desfiles de carnaval? A verdade é que nem mesmo a chancela constitucional é capaz de transformar em direito aquilo que na verdade não o é. Ou, como diria Julieta: “Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume” [10].
O fornecimento de transporte coletivo não deixa de ser um serviço sob o nome de “direito ao transporte”, assim como o privilégio de receber salário sem trabalhar, gerando prejuízo para o empregador, não deixa de ser um privilégio com a alcunha de “direito de greve”. Serviços e privilégios não são direitos.
Nesse sentido, convém novamente mencionar outra passagem bastante marcante da obra de Bastiat:
Temos todos forte inclinação a considerar o que é legal como legítimo, a tal ponto que são muitos os que falsamente consideram como certo que toda a justiça emana da lei. Basta que a lei ordene e consagre a espoliação para que esta pareça justa e sagrada diante de muitas consciências [11].
O curioso é que, no trecho acima, Bastiat estava se referindo a “direitos” que hoje, em nossa sociedade, seriam considerados completamente torpes, como o direito de possuir escravos. No entanto, os argumentos na defesa de tais “direitos” eram os mesmos que são usados para defender os mais diversos serviços e privilégios travestidos de “direitos”, pois, como afirma o próprio Bastiat, a espoliação legal tem muitos nomes [12].
O que pouco se percebe é que quando o Estado reconhece como direito algo que na verdade é um serviço ou um benefício, alguém está necessariamente sendo subtraído, pois o Estado não fornece nada sem subtrair (ou espoliar, como caracterizaria Bastiat) de particulares os meios para custear suas ações por meio de tributos. É daí que surge a famosa frase do economista Milton Friedman: “Não existe almoço grátis”.
O problema é que a pessoas geralmente só veem o benefício gerado pelo suposto direito; veem, por exemplo, apenas o estudante orgulhosamente graduado em uma universidade pública gratuita, mas não veem os milhares de espoliados (que no Brasil são sadicamente chamados de “contribuintes”) que a financiam sem às vezes sequer terem tido a oportunidade de lá pisarem.
Tal fenômeno, inclusive, foi tratado por Bastiat em outra obra, intitulada O que se vê e o que não se vê, na qual o autor destaca a dificuldade da humanidade em perceber as consequências que não são imediatas:
Assim, quando um homem é atingido pelo efeito do que se vê e ainda não aprendeu a discernir os efeitos que não se veem, ele se entrega a hábitos maus, não somente por inclinação, mas por uma atitude deliberada.
Isso explica a evolução fatalmente dolorosa da humanidade. A humanidade se caracteriza, em seus primórdios, pela presença da ignorância. Logo, está limitada às consequências imediatas de seus primeiros atos, as únicas que, originalmente, consegue enxergar. Só com o passar do tempo é que aprende a levar em conta as outras consequências [13].
Portanto, a imposição de que um “direito” consistente em uma prestação estatal – que, por consequência, implica na espoliação de outrem – não pode ser suprimido nada mais é do que a fixação da espoliação legal como cláusula pétrea constitucional. Curioso notar, no entanto, que o que a Constituição Federal acertadamente estabelece como cláusula pétrea não são todos os direitos fundamentais, mas sim somente “os direitos e garantias individuais” [14] – ou seja os direitos fundamentais de primeira geração –, o que demonstra a total ausência de fundamento constitucional para o dito princípio.
É justamente nesse momento de grave crise econômica que é necessário que os juristas, que durante muitos anos entenderam o Direito como um fim em si mesmo, passem a perceber que o Direito é apenas um instrumento, que não pode ser pensado de forma descolada da realidade. E a realidade no mundo inteiro e no Brasil é a absoluta falência do modelo do Welfare State e das políticas públicas assistencialistas economicamente insustentáveis.
O presidente norte-americado John F. Kennedy certa vez afirmou que “quando escrita em chinês, a palavra crise compõe-se de dois caracteres: um representa perigo e o outro representa oportunidade”. Para os juristas, a crise econômica deverá servir como oportunidade para repensar o Direito e, principalmente, os “direitos”, para que passemos a proteger apenas os verdadeiros direitos, e não a espoliação legal, assim como Bastiat já havia nos ensinado no Século XIX.
[1] BASTIAT, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010, p. 18.
[2] BASTIAT, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010, p. 21.
[3] STRECK, Lênio. O pan-principiologismo e o sorriso do lagarto. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, mar. 2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-mar-22/senso-incomum-pan-principiologismo-sorriso-lagarto
[4] SARLET, Ingo Wolfgang. A assim designada proibição de retrocesso social e a construção de um direito constitucional comum latinoamericano. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte, ano 3, n. 11, jul./set. 2009.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 267.
[6] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 344.
[7] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 268.
[8] Fonte: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2015/09/09/transporte-passaaser-direito-social-na-con…
[9] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 268.
[10] SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. 2ª Edição. São Paulo: LL Library, 2015, p. 40.
[11] BASTIAT, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010, p. 16.
[12] BASTIAT, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010, p. 21.
[13] BASTIAT, Frédéric. O que se vê e o que não se vê. In: BASTIAT, Frédéric. Frédéric Bastiat. 2ª edição. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010, p. 19.
[14] Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
[…]
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
[…]
IV – os direitos e garantias individuais.